A Política Habitacional no Brasil e a formação das áreas ilegais
Panorama geral
Dentro do seu contexto histórico, a formação de áreas ilegais no Brasil está diretamente relacionada ao processo excludente da urbanização e da produção de habitação pelo Estado durante todo o século XX.
O mercado imobiliário capitalista, os baixos salários e a desigualdade social presente desde o início da formação da sociedade brasileira, impossibilitaram o acesso à moradia para grande parte da população, que principalmente nas últimas décadas, vêm sendo produto e produtor dos processos de periferização, segregação, degradação ambiental, má qualidade de vida e violência nas cidades.
A história mostra que a perpetuação da desigualdade no planejamento urbano agrava-se após a aprovação da Lei 601/1850, que ficou conhecida como “Lei de Terras”. Ela passou a regular as terras devolutas e a aquisição de terras, determinando em seu artigo 1º que o único meio para aquisição da propriedade de terras era a compra, deslegitimando, portanto, o acesso à terra pela posse ou ocupação. Ajudando a agravar o problema, em 1888 acontece a abolição da escravatura. Os escravos libertos que não permaneceram nas áreas rurais foram em busca de sobrevivência nas cidades. Todo este quadro faz com que as cidades cresçam com um flagrante despreparo em termos de políticas públicas que atendessem essa população, formando cidades desordenadas. Portanto, percebe-se que desde o início do processo de construção das cidades e da sociedade brasileira, houve um descompasso entre o acesso à moradia e o crescimento populacional.
A primeira forma de reconhecimento das áreas ilegais na cidade se dá no século XIX, quando o olhar dos interessados pelo cenário urbano do Brasil e da Europa descobre os cortiços considerados foco de pobreza, habitat propício à violência, epidemias e vícios. Porém, eram na verdade local de moradia de parcela carente da população. Os cortiços também são forma irregular de ocupação, sendo “imóveis que têm como principal característica a precariedade das condições habitacionais que, em sua maioria, resultam em condições de vida e moradia subumanas” (Saule Junior, 2004, p. 439).
Com base no movimento europeu pela reforma urbana higienista, as cidades brasileiras iniciam a construção de grandes avenidas e implantação de saneamento básico para a composição paisagística a fim de atender aos interesses da burguesia do período industrial. O Estado, a partir do ano de 1856, começa a dificultar a construção de novas moradias populares no centro da cidade, posteriormente proíbe a sua construção, fechando-as, e em alguns casos, efetua a sua demolição.
Essas reformas não criaram habitações populares suficientes para abrigar a classe trabalhadora residente nos cortiços, fazendo surgir outras formas de áreas ilegais para abrigar essas famílias, iniciando a periferização e favelização. Como escreve Maricato (2001, p. 17) “a população excluída desse processo era expulsa para os morros e franjas da cidade”.
A expansão acelerada das áreas ilegais na década de 1970 e 1980 se confunde com o colapso do sistema de crédito habitacional. As duas décadas que marcaram a explosão da moradia subnormal — classificação do IBGE para residências em áreas irregulares, com imóveis distribuídos desordenadamente e sem acesso a serviços básicos — coincidem com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1986, e o agravamento da crise econômica que obrigou grande parte da população a continuar a instalar-se nas áreas periféricas, insalubres, sem infra-estrutura e ilegais das cidades. Esse contínuo inchaço do espaço urbano pela população rural e migratória na procura de melhor qualidade de vida e emprego levou o país a ter dados de urbanização superior aos índices mundiais, superando os 80%, e problemas de ordem social e econômica entre os mais graves, sendo na época o terceiro pior país do mundo em distribuição de renda. (Grazia, 2001).
O crescimento da cidade ilegal, na qual as famílias se apossam da terra sem compra nem título de posse, passou a ser discutido como a mina de ouro do urbanismo, onde sem nenhum custo inicial por parte do poder público, é “fornecido” um subsídio aos paupérrimos, procurando eximir a participação do Estado na produção de moradias. A especulação imobiliária é corrente na realidade brasileira, onde ainda 1/3 dos espaços para construção mantém-se vagos na expectativa de valorização, expulsando a população de baixa renda para as áreas ilegais, onde a especulação também já acontece. Estima-se que apenas 20% da população que necessita de habitação têm possibilidade de pagá-la e que os 80% restantes, além da ausência da renda, não apresentam o perfil para assumir os financiamentos existentes. (Davis, 2006)
Os dados acerca da ilegalidade urbana não são precisos, mas Osório (2004, p. 25) informa que em cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, estima-se que entre 20 e 22% da população viva em favelas e Alfonsin (2006, p. 92) diz que “não seria exagero afirmar que pelo menos 30 a 50% das famílias moradoras dos territórios urbanos brasileiros, em média, moram irregularmente (no Recife estima-se que este índice se aproxime de 70% dos domicílios urbanos)”.
Ainda, o site do Ministério das Cidades informa que “6,6 milhões de famílias não possuem moradia, 11% dos domicílios urbanos não têm acesso ao sistema de abastecimento de água potável e quase 50% não estão ligados às redes coletoras de esgotamento sanitário”.
Diante destes dados, tem-se que o Brasil é, entre os países da América Latina, o mais atingido pela formação de áreas ilegais, e que de acordo com dados da ONU possui 15% dos cerca de 1 bilhão de favelados do planeta.
O crescimento desenfreado do espaço urbano ilegal, a exclusão social e o descaso do poder público frente às questões habitacionais, sobretudo na década de 1980-90, fizeram com que a questão urbana ressurgisse relacionada aos movimentos sociais de reivindicação por infra-estrutura e regularização das áreas ilegais, e esses movimentos culminaram num novo ordenamento constitucional.
Embora a Constituição Federal de 1988, na vertente democrático-participativa, e o Estatuto da Cidade, aprovado no ano de 2001, tragam como referências normativas a questão da regularização fundiária, e tenham avançado no sentido de promover maiores instrumentos de regularização fundiária e atender o direito fundamental a moradia, pode-se afirmar que, nesses anos que sucederam a sua aprovação, a efetivação desses instrumentos de ordenamento territorial ainda é tímida.
Portanto, a realidade brasileira é que a excessiva valorização agregada às áreas centrais das cidades (que recebiam melhor tratamento urbanístico por parte dos governantes, sendo equipadas com saneamento básico, iluminação pública, pavimentação das ruas, etc.), fez com que os moradores mais necessitados não tivessem condições de adquirir imóveis nestas áreas. Desta maneira, a população que tinha condições de pagar, morava na “cidade formal”, enquanto a população desprovida de recursos financeiros habitava a “cidade informal”, concluindo-se que “a ilegalidade é subproduto da regulação tradicional e das violações contra os direitos à terra e à moradia” (Osório, 2004, p. 28).
Portanto, a regularização fundiária passa a ser o objetivo da política habitacional social, lembrando que no “Rio de Janeiro, por exemplo, tem 700 favelas. Não há dinheiro público suficiente nem terra disponível para fazer projectos urbanísticos e habitacionais de qualidade. O Brasil não tem condições para produzir melhorias habitacionais verdadeiramente significativas, pelo que o esforço tem que inevitavelmente concentrar-se na urbanização da área, deixando à comunidade a melhoria habitacional, pelo menos por enquanto.” (Fernandes, 2005)
Caracterização das áreas urbanas ilegais
As áreas ilegais são definidas por um estudo realizado pelo Instituto Polis, que as estruturou devido suas diversas formas encontradas no Brasil, em:
a) Áreas loteadas e ainda não ocupadas: ocupações realizadas em espaços anteriormente destinados a outros fins, como construção de ruas, áreas verdes e equipamentos comunitários ou, ainda, casas construídas sem respeitar a divisa dos lotes;
b) Áreas alagadas: áreas localizadas em aterramentos de manguezal ou charco; geralmente são terrenos de marinha ou da União em áreas litorâneas:
c) Áreas de preservação ambiental: construções realizadas em margens de rios, mananciais ou em serras, restingas, dunas e mangues;
d) Áreas de risco: moradias construídas em terrenos de alta declividade, sob redes de alta tensão, faixas de domínio de rodovias, gasodutos e troncos de distribuição de água ou coleta de esgotos.
As ocupações ilegais são as que os possuidores não têm o título de propriedade ou de posse do imóvel. São “ilegais” posto que violam a lei, já que, a priori, não seria permitido ocupar lugar que não lhe pertence, sem vínculo jurídico para regularizar a situação, como é o caso das locações. Aqui, de um lado tem-se o morador, pobre e na maioria das vezes sem instrução, que não conhece seus direitos e que precisa de um lugar para morar. Do outro lado encontram-se os proprietários dos imóveis, titulares da propriedade, mas que não estão fazendo uso dela; em geral são bem informados e adotam todas as medidas jurídicas possíveis para defender seu patrimônio. A luta pela sobrevivência acaba sendo muito mais do que social e jurídica. Já as ocupações irregulares são as que não tem aprovação do Município para sua ocupação, ou seja, em geral não atende os padrões urbanísticos previstos nas leis de uso e parcelamento do solo urbano (Saule Junior, 1999). Estas ocupações, tanto as ilegais quanto as irregulares, só tem aumentado, fazendo aumentar a “desordem” das cidades.
Algumas das diversas formas de irregularidade podem ser caracterizadas pelas favelas, que podem estar instaladas tanto em áreas públicas como privadas, cortiços, loteamentos clandestinos e/ou irregulares, construções sem “habite-se”, edifícios públicos ou privados abandonados que acabam por abrigar moradores, e, também, não é raro encontrar pessoas morando debaixo de pontes, viadutos ou na beira das estradas.
A função social da propriedade
O conceito de propriedade tem sofrido profundas alterações com o passar do tempo, bem como a compreensão dos homens em relação ao poder que exerciam sobre as coisas também foi alterada. Primeiro, a propriedade era compreendida em âmbito estritamente individual, tendo o proprietário liberdade absoluta para fazer o que desejasse com os seus bens, ou seja, tinha ele poder ilimitado no que se referia ao uso e gozo da propriedade, direito exercido sem preocupação ou interesse social e coletivo. Quando a relação entre o proprietário e o bem deixou de ser vista como absoluta e passou a ser vista como uma relação entre um indivíduo e a sociedade, tendo o proprietário a obrigação de usar seu bem sem desrespeitar os direitos tidos como coletivos, iniciou-se a formulação da compreensão acerca da função social da propriedade.
Portanto, o conceito de propriedade altera-se com tempo e não é, nem pode ser, considerado definitivo. Ele está sempre em consonância com a sociedade que o cerca. No atual estágio que se encontra a humanidade, a propriedade, para ser juridicamente protegida, deve cumprir uma função social. Neste sentido, importante é a lição de Carlos Roberto Gonçalves (2006, p. 206) de que [...] o conceito de propriedade, embora não aberto, há de ser necessariamente dinâmico. Deve-se reconhecer, nesse passo, que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um imenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária.
Contudo, a propriedade não pode mais ser vista apenas como um direito civil (direito real), sendo seu conteúdo delineado pelo direito constitucional desde há muito tempo, seja para defini-la como um direito individual, seja para defini-la também como um direito social. Assim, a Constituição assegura o direito de propriedade e estabelece seu regime fundamental enquanto que o Direito Civil disciplina as relações civis que se referem a ela.
Como afirma José Afonso da Silva (2003, p. 281) “a funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social”, sendo que ela se modifica conforme se modificam as relações de produção, ou seja, as relações sociais.
Foi no século XVIII que a propriedade da terra passou a ser designada apenas por propriedade. Ela deixou de prover o alimento que sustentava o homem e passou a abrigar as fábricas que produziam mercadorias e rendiam lucros que eram novamente investidos. Para Marés (2003, p. 45) “[...] o patrimônio privado deixa de ser uma utilidade para ser apenas um documento, um registro, uma abstração, um direito. O aproveitamento da terra ganha, juridicamente, outros nomes, uso, usufruto, renda, assim como a ocupação física é chamada de posse. A Terra deixa de ser terra e vira propriedade”.
Foi neste sentido que as Constituições passaram a proteger a propriedade, sendo assim, a acumulação de riquezas está protegida e ganha legitimidade.
Jacques Távola Alfonsin (2004) e Carlos Frederico Marés (2003) compartilham a sábia lição de que não é o direito de propriedade quem deve cumprir uma função social, mas sim o objeto, ou seja, a propriedade imóvel e o seu uso. Portanto, o uso da terra pelo homem (que se transforma em direito de propriedade) é que se relaciona com a função social, já que o título que o vincula a ela (propriedade) é uma abstração. Para Alfonsin (2004) a função social da propriedade não está reduzida ao prolongamento do direito de propriedade, já que se refere ao efetivo uso dos bens e não à sua titularidade jurídica, pois aquela independe de quem detenha o título de propriedade. Desta forma, o novo pensamento beneficia aquele que utiliza o bem de forma a fazer valer sua função social, e não aquele que, embora regularmente constituído como proprietário, não faça uso do imóvel de forma que lhe aproveite melhor.
Diante da visão adotada, a propriedade deixa de ser um direito absoluto, ilimitado e perpétuo que tinha como base o direito de “usar, fruir e abusar da coisa” e passa a sofrer restrições para que seu uso favoreça a comunidade na qual se insere e deve ser exercido de forma consciente.
Para Nelson Saule Junior (2004, p. 213) “a função social da propriedade é o núcleo basilar da propriedade urbana” e o direito à propriedade só pode ser protegido pelo Estado quando esta cumprir com sua função social. O mesmo autor explica que “o princípio da função social da propriedade, como garantia de que o direito da propriedade urbana tenha uma destinação social, deve justamente ser o parâmetro para identificar que funções a propriedade deve ter para que atenda às necessidades sociais existentes nas cidades. Função esta que deve condicionar a necessidade e o interesse da pessoa proprietária, com as demandas, necessidades e interesses sociais da coletividade". (Saule Junior, 2004, p. 214)
No Brasil, na Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Republicana de 1891, a propriedade era tida como um direito individual, sem qualquer atenção para o seu interesse social, em outras palavras, era um direito individual, não um direito social. Ela era regulada como condição básica à inviolabilidade dos direitos civis e políticos, da liberdade e da segurança individual.
A partir da Constituição de 1934 iniciou-se um novo conceito de propriedade, por previsão do art. 113, o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse coletivo, idéia esta que se contrapunha à de propriedade como direito absoluto e inviolável da pessoa humana que permanecia até então, passando-se a compreendê-la também sob o aspecto social, já que o direito também estava sendo visto sob o enfoque do Estado social. Assim, a Constituição de 1934 dispôs sobre o princípio da função social da propriedade, princípio este que fora mantido nas Constituições de 1937 e 1946, sendo que na última constou também o direito à propriedade dentre os direitos individuais, além do social.
A Constituição Federal de 1967 destacou o tema da “função social da propriedade”, mantida inclusive na Emenda Constitucional de 1969, permanecendo o direito de propriedade sob os dois aspectos (social e individual).
Na Constituição Federal de 1988 o direito à propriedade foi garantido enquanto direito fundamental (art. 5º, XXII), sendo um direito inviolável e essencial ao ser humano, posto ao lado de outros direitos, como a vida, a liberdade, a segurança, etc. Mas também à propriedade foi atribuído interesse social, pois o art. 5º, XXIII prega que “a propriedade atenderá a sua função social”, portanto, fica condicionada à efetividade de sua função social.
No que se refere à propriedade urbana, esta vem regulada na Constituição Federal em seu art. 182[6], que determina ser o Município, através do Plano Diretor, quem estabelece critérios para aplicação da função social da propriedade urbana, ordenando a cidade de forma a garantir o bem-estar dos seus habitantes e seu desenvolvimento.
O Estatuto da Cidade em seu art. 39 dispõe que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”
Já o art. 2º[7] do Estatuto da Cidade estabelece as diretrizes gerais da política urbana a ser adotada pelos Municípios brasileiros quando da elaboração do plano diretor, respeitando a “garantia de cidades sustentáveis – entendida como o direito à terra urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (Saule Junior, 2004, p. 216). Assim, pode-se afirmar que a moradia é um direito fundamental que deve ser respeitado e atendido por meio da função social da propriedade.
Para fazer valer este direito – de moradia digna – os Municípios têm que, em seu plano diretor, regulamentar os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade de forma a promover habitação consoante o que dispõe o art. 2º, VI sem qualquer discriminação social, condição econômica, raça, cor, sexo ou idade. Para isso, podem os proprietários de imóveis que não estão destinados à moradia serem induzidos a cumprir a função social da propriedade, para não sofrerem sansões que lhes seriam desinteressantes.
Para contribuir com a existência de um meio urbano saudável e para fazer cumprir a função social da propriedade, os habitantes da cidade (proprietários ou não de seus imóveis) têm direito a uma moradia digna, e esta resulta do dever dos “[...] proprietários de solo urbano não utilizado, não edificado ou subutilizado, de compatibilizar o uso de seus imóveis com as necessidades e demanda de moradias nas cidades, em especial, das populações sem moradia digna, que vivem em nossas metrópoles”. (Saule Junior, 2004, p. 216).
A regularização fundiária como Política de Habitação Social
Para compreender a regularização fundiária como política de habitação social, é necessário analisar os dispositivos constitucionais que culminaram no surgimento do Estatuto da Cidade, que por sua vez disponibilizou aos Municípios instrumentos jurídicos e urbanísticos para o combate às ilegalidades urbanas, exigindo o cumprimento da função social da propriedade e garantir às populações, sobretudo de baixa renda, o exercício do direito fundamental à moradia.
A Constituição Federal de 1988 redefiniu a estrutura administrativa, distribuindo as competências entre os entes federados, destacando-se primeiro que os Municípios foram alçados à categoria de ente federado pelo art. 18 da Constituição Federal de 1988, inovação esta que foi chamada de “descentralização administrativa”, oportunidade em que passaram a ter responsabilidades em diversas áreas, como educação, saúde, agricultura e de maneira muito direta nas questões relativas ao urbanismo. Segundo o art. 21, inc. XX da Constituição Federal, compete à União instituir diretrizes para a habitação, e, segundo o art. 23, é competência comum da União, Estados e Municípios a “promoção e implementação de programas para construções de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (inc. IX) bem como determina o “combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos” (inc. X). Portanto, todos os programas habitacionais passam a ser desenvolvidos pelos entes federados em conjunto, ou pela adesão a um programa nacional.
No capítulo destinado ao tratamento “Da Política Urbana”, formado apenas pelos artigos 182 e 183, o constituinte tem a intenção de pôr fim às desigualdades criadas pela política de urbanização brasileira adotada até então, na qual os interesses patrimoniais estavam superprotegidos, em especial pelo Código Civil de 1916 (hoje revogado pelo Código Civil de 2003). Atualmente, a propriedade é regulamentada pelo Plano Diretor de cada Município, que lhe dá forma, determinando as possibilidades de uso e ocupação, segundo critérios pré-estabelecidos pelo Estatuto da Cidade.
Segundo Saule Junior (1999), antes da Constituição Federal de 1988 não existia menção à ordem urbanística no Brasil, de forma que o referido capítulo destinado ao tema dispõe sobre os princípios, responsabilidades e obrigações do poder público e também acerca dos instrumentos jurídicos e urbanísticos para conter os desgastes ambientais e acabar com as desigualdades sociais.
No que se refere ao direito à moradia, este foi incluído no texto constitucional por força da Emenda Constitucional nº 26/2000, que alterou a redação original do art. 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia foi incluindo no texto constitucional, sendo atribuindo a ele status de direito social, compromisso este assumido pelo Brasil por ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Para regulamentar o capítulo da política urbana, bem como assegurar formas de garantir o direito à moradia, a Lei 10.257/2001, chamada de Estatuto da Cidade, fez surgir diversas formas de intervenção do Poder Público sobre o patrimônio particular bem como sobre as próprias cidades. Para Saule Junior (2004, p. 209) o novo instrumento é “uma lei inovadora que abre possibilidades para o desenvolvimento de uma política urbana que considere tanto os aspectos urbanos quanto os sociais e políticos das nossas cidades”.
O Estatuto da Cidade regulamenta uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos, reafirmando o papel central do Plano Diretor como eixo principal da regulação urbanística das cidades. Com o objetivo de garantir o pleno desenvolvimento das cidades e a função social da propriedade urbana, permite aos Municípios a adoção de instrumentos para a urbanização e a legalização dos assentamentos, o combate à especulação imobiliária, uma distribuição mais justa dos serviços públicos, a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária, soluções planejadas e articuladas para os problemas das cidades e a participação da população na formulação e execução das políticas públicas.
Os principais instrumentos do Estatuto da Cidade a serem destacados são a regulamentação das sanções urbanísticas e tributárias aos terrenos sub-utilizados e os instrumentos de regularização fundiária, como o usucapião coletivo e a concessão de uso especial para fins de moradia.
Portanto, a principal ferramenta que os Municípios dispõem para atuarem contra a ilegalidade, é o Plano Diretor, de implementação obrigatória para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes, as localizadas nas regiões metropolitanas (mesmo com menor número de moradores), aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico e de impacto ambiental e para os casos em que o Município deseja combater a especulação imobiliária (um dos fatores propulsores da ocupação das áreas informais no Brasil).
O Plano Diretor pode combater a especulação imobiliária através do parcelamento, edificação ou utilização compulsória, na qual o proprietário é notificado pela Prefeitura indicando um prazo para que a área seja utilizada ou construída; IPTU progressivo no tempo, ou seja, não sendo cumprida a notificação, a Prefeitura aplicará um IPTU maior a cada ano pelo prazo máximo de cinco anos seguidos; desapropriação com pagamento em título da dívida pública, ou seja, se o proprietário ainda se recusar a dar uma utilidade ao imóvel, a Prefeitura poderá desapropriá-lo.
A democratização do acesso à terra, através da regularização fundiária, deve vir expressa no Plano Diretor pela delimitação das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), áreas ocupadas por população de baixa renda (favelas, ribeirinhos, morro, loteamentos irregulares e clandestinos) que precisam ser urbanizadas e regularizadas, a partir do estabelecimento de normas especiais para cada situação. Inclui também áreas vazias ou mal aproveitadas que podem ser destinadas à habitação de interesse social. Deve também realizar a delimitação de áreas necessárias para garantir o direito à moradia, para a implantação de escolas, postos de saúde, área de tratamento de esgoto, área de lazer, áreas verdes, para a proteção de áreas de interesse ambiental ou histórico, cultural ou paisagístico.
O maior desafio da política de habitação social brasileira é atuar diretamente contra a ilegalidade urbana, por meio da regularização fundiária. Para Betânia Alfonsin (2006, p. 100) [...] a regularização fundiária é uma intervenção que, para se realizar efetiva e satisfatoriamente, deve abranger um trabalho jurídico, urbanístico, físico e social. Se alguma destas dimensões é esquecida ou negligenciada, não se atingem plenamente os objetivos do processo.
Convém lembrar que muitos municípios brasileiros adotaram, mesmo antes do Estatuto da Cidade, medidas de regularização fundiária, porém, apenas com a implementação da nova lei é que puderam atuar com maior eficiência, posto que ela que lhes permite uma possibilidade maior de atuação para intervir nas questões ilegais e irregulares.
Portanto, dentro da nova visão acerca das questões relativas à moradia, entende-se que a política de habitação social não está vinculada apenas com a “casa”, mas sim com a mobilidade e transporte coletivo, infra-estrutura, saneamento e acesso ao solo urbano por meio da regularização fundiária, prioritário à população de baixa renda, através da melhoria de habitabilidade dos núcleos e a concessão de títulos de uso ou propriedade.
Conclusão
A Constituição Federal de 1988 trás no seu corpo legislativo um capítulo que trata da Política Urbana, onde possibilita a regularização fundiária. Assim, reconhece a falência da política habitacional brasileira adotada até então, uma vez que deixa implícita em sua redação a compreensão de que milhares de famílias autoconstruíram sua moradias em terrenos vazios, que não lhes pertenciam, ocupados a fim de exercer o mais elementar dos direitos humanos: a moradia.
Diante da crescente ilegalidade urbana, atingindo em especial a população mais carente, a Constituição impõe que as três esferas do poder ajam conjuntamente para buscar a solução do problema. O Estatuto da Cidade é posteriormente criado para regulamentar as determinações impostas e permitir que os Municípios implantem os instrumentos de regularização. Tendo em conta que esta realidade atinge milhões de brasileiros e que estes já estão ocupando um espaço urbano e que não há possibilidade de construção de “novas” casas para todos que vivem em situação precária e ilegal, a regularização fundiária passa a ser o centro dos programas habitacionais sociais, onde ocorre a legalização urbanística e jurídica das ocupações, garantindo os preceitos constitucionais da função social da propriedade e direito fundamental à moradia.
Notas
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[6] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º. É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
[7] Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;