O quilombo como direito constitucional de 1988.
Dentre os direitos emanados da Constituição de 1988, o Artigo 68 do
ADCT prevê o reconhecimento legal dos chamados “remanescentes das comunidades
dos quilombos”. Embora este termo tenha já de início sido contestado,
percebeu-se em longos anos de debate, que o sujeito do direito referido
pelo dispositivo constitucional não poderia ser objetificado através de um
rótulo, selo ou carimbo.
A identidade social não é um estado fixo, imutável,
ou algo que pode ser imputado desde fora e de modo unilateral, mas, acontece
desde uma dinâmica relacional que envolve todo o conjunto de forças em
movimento na sociedade.
O respeito ao princípio de autodeterminação dos
povos, o qual se inclui a autoidentificação está descrito na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho ao qual o Brasil é um dos signatários.
O conceito da identidade social a que me refiro, dá espaço para
o reconhecimento das instâncias organizativas dos grupos que se autoreconhecem
a partir de noções de pertenças construídas e legitimadas no
interior dos próprios grupos embora decorrentes de dinâmicas e forças sociais
em movimento.
O direito intitulado “quilombola” emerge no cenário de
redemocratização do país como um dos vetores representativos de grupos até
então invisíveis no cenário político nacional. Emerge como reivindicação de
grupos até então com reduzido grau de mobilização, mas esta era a situação
de todos os demais, após duas décadas de regime militar. O que não quer dizer
falsificados, ou ancorados em premissas infundadas. Se assim fosse estaríamos
desconsiderando todos os fundamentos que instituem o social, e os próprios
Estados-Nação não teriam qualquer base de sustentação como organizações
humanas criadas com autênticos propósitos políticos e sociais.
Durante estas duas décadas desde sua aprovação, o Artigo 68 foi objeto
de discussão parlamentar, jurídica, científica e popular. Os movimentos
sociais negros, eminentemente urbanos, interagiram com os movimentos
dos negros por regulamentação fundiária, formando um bloco de afirmação
política voltado para o reconhecimento do direito territorial dos descendentes
de escravos africanos. Se no momento da aprovação da Lei Constitucional o
assunto tinha audiência restrita, nos últimos vinte anos esse quadro mudou e
fatos novos o transformaram e o consolidaram no cenário político brasileiro,
evidenciando uma tomada de consciência inédita dos negros sobre seus
direitos territoriais.
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O Projeto de Regulamentação do Artigo 68 do ADCT, depois de ter
sido vetado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em
13 de maio de 2002 voltou à pauta da Câmara e do Senado, pela pressão e
forte mobilização dos movimentos sociais. Legislações estaduais de São Paulo,
Pará, Maranhão e Rio Grande do Sul favoráveis ao direito territorial quilombola,
já aprovadas e em vigor arrastaram a legislação federal para uma definição.
O Artigo 68, se comparado à primeira lei de terras mencionada na
primeira parte deste trabalho, também poderia ser enquadrada na mesma
linha de raciocínio, gerando perplexidades quanto à suposta universalidade
da lei, ou mesmo quanto à aplicação do fundamento universal do direito à
propriedade. Princípios opostos regem as duas leis, a primeira os menciona
para excluir da ordem jurídica enquanto a segunda tem a intenção explícita
de inclusão. Evidentemente que aqui, como no mesmo caso das vagas
no ensino público, há restrições que vem principalmente da parte que foi
beneficiada pelo precário universalismo. Seguindo à risca os argumentos
atualmente usados para questionar o decreto que regulamenta o Artigo 68,
O grupo jurídico constituído pela Casa Civil da Presidência da República
estudou detalhadamente o assunto, ouviu diversos setores da sociedade civil,
representantes de ministérios, especialistas em direito agrário, pesquisadores,
associações quilombolas, representantes de ministérios, procuradorias,
líderes dos movimentos negros entre outros e o resultado foi o Decreto 4887,
assinado pelo Presidente da República em 20 de novembro de 2003. Segundo
este Decreto, a aplicação do Artigo 68 do ADCT fica a cargo do INCRA
– Instituto
de Colonização e Reforma Agrária, órgão do Ministério do Desenvolvimento
Agrário. Além disto, o Governo Federal delegou à SEPPIR (Secretaria
de Políticas e Promoção da Igualdade Racial) órgão ligado à Presidência da
República, a coordenação dos programas de desenvolvimento voltados para
as áreas em processo de regularização fundiária.
A maior parte das lideranças dos agrupamentos negros tomaram conhecimento
do direito constitucional no final anos 80, quando aprofundaram
um conjunto de proposições assentadas em suas próprias experiências e pontos
comuns apresentados nas diversas reuniões que se seguiram em todo o
pais.
Essas proposições ancoraram-se, sobretudo, nos relatos compartilhados
sobre o teor dos conflitos territoriais existentes no país há mais de um século.
Tive oportunidade de presenciar alguns desses encontros e ouvir depoimentos
de líderes com mais de oitenta anos, de ouvir as narrativas sobre as lutas
de seus antepassados e as inúmeras tentativas feitas para legalizar as terras.
Um dos artifícios mais utilizados para a legitimação da cultura cartorial e que
ludibria os direitos desses baseia-se na produção de dossiês, títulos e mapas
territoriais. Foi o que aconteceu na Comunidade de Casca, no Rio Grande do
Sul em que as terras foram dispostas desde divisões sesmariais realizadas pelo
próprio legatário em 1824 (Leite, 2004).
Os grupos negros que lá chegaram
ao fim do século XVIII nunca se preocuparam em produzir mapas. Quando
receberam as terras através do testamento de 1824, os limites territoriais
praticados correspondiam aos memoriais de uso, as referências ambientais, o
manejo do ecossistema, das terras de uso e usufruto desde seus antepassados.
Os mapas e a cartografia apresentada quase meio século depois se sustentava
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precisamente no uso do aparato cartorial oficial, utilizado comumente para
formalizar, registrar, oficializar e legitimar terras e neste caso, também o seu
esbulho. Procurar pelos documentos, neste caso, é distanciar-se do direito
dos herdeiros - direito que só pode ser retirado de dentro da linguagem do
grupo, pois ele não está registrado em nenhum papel. O registro oral não é
suficiente para se chegar ao senso de direito requerido por esses sujeitos, que,
aliás, somente passam a sujeitos se ouvidos.
Durante os últimos 20 anos, muitos estudos acadêmicos foram produzidos
com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre esses conflitos,
dentre eles os do NUER/UFSC5. Estas pesquisas integram uma já significativa
produção acadêmica que resultam, inclusive, de dissertações de mestrado,
teses de doutorado, relatórios e laudos periciais6. Embora demonstrem exaustivamente
que o procedimento de expropriação das terras dos grupos negros
se iniciou ainda no século XIX, antes da Abolição da escravatura, há posições
explícitas na atualidade, construídas mediante o desconhecimento desses estudos,
que contestam estas evidencias. Afirmam, com base em idéias pouco
fundamentadas, que os conflitos territoriais envolvendo os quilombos, são
fatos recentes, nascidos tão somente dos dispositivos constitucionais de 1987.
A invisibilidade dos grupos rurais negros no Brasil é a expressão
máxima da ordem jurídica hegemônica e também expõe uma forma de
violência simbólica. Sua característica principal é a criminalização daqueles
que lutam para permanecer em suas terras. Como bem demonstrou Foucault
(1999), a violência não é uma invariante ou um objeto natural, mas uma
espécie de significante sempre aberto para receber novos significados. Daí por
que, para falar em violência é preciso, antes de tudo, contextualizar, produzir
referências, descrever percursos e experiências que foram guardadas nas
memórias orais dos grupos, expor fatos que não se encontram nos documentos
escritos, no mundo dos papéis, em cartórios ou em bibliotecas.
A modalidade de violação de direitos humanos neste caso está
diretamente relacionada à sua própria invisibilidade, está ancorada em
tecnologias de controle e manipulação circunscrita ao mundo letrado. Ela
opera através do uso abusivo da máquina estatal, leis, bens públicos, força
repressiva e expropriação dos recursos que seriam de toda a coletividade.
Tecnologia há mais de três séculos solidamente instalada e tendo como sua
principal base de sustentação o controle do acesso à justiça.
A primeira Lei de Terras de 1850, redigida no evidente contexto de
esgarçamento e saturação do sistema escravista, contribuiu substancialmente
para tornar invisíveis os africanos e seus descendentes no novo processo de
ordenamento jurídico-territorial do país. Ao negar-lhes a condição de brasileiros,
segregando-os através da categoria “libertos” esta lei inaugura um dos
mais hábeis e sutis mecanismos de expropriação territorial4. A sua marca racial
é incontestável, seu poder de favorecimento, idem. Porém o processo de
racialização introduzido é disfarçado, sutil, e passa a invisibilizar as diversas
formas de favorecimento, legitimando-as desde a concepção de direito universal.
A Lei de 1850
atribuiu aos chamados “libertos”, uma distinção que os deixou durante mais
de século de fora da categoria de “brasileiros” e da de “estrangeiros”. É uma
lei que inventa sujeitos, porém, com propósitos inversos, ou seja, para inserir
barreiras que os impediram de regularizar suas terras nas mesmas condições
que os demais.
Poderíamos constatar que ambas foram, de fato, “inventadas”,
só que a primeira lei deixou de fora dos direitos supostamente universais uma
parte não pouco significativa dos humanos.
Durante os últimos vinte anos aconteceram centenas de encontros em
todo o Brasil, de grupos negros hoje organizados em associações locais, estaduais
e nacionais.
As práticas coletivas de uso e usufruto das terras foi alvo
de intenso debate nestas diversas instâncias organizativas, que amadureceu
desde mobilizações dos próprios grupos negros, em sua maioria associados à
CONAQ – Coordenação Nacional das Associações Quilombolas. A CONAQ
lidera uma rede de organizações que procuram consolidar sua existência
através do diálogo com as instituições, forçando estas a reconhecê-los. Operando
a partir de novas estratégias, dentre elas o uso da linguagem jurídica
como forma de se legitimar, as linhas de ação do movimento quilombola
têm buscado sua legitimidade através das novas adesões, ampliando sempre
as estatísticas sobre sua abrangência.
Muitos líderes comunitários, sem acesso
à informação tomaram conhecimento de seus direitos muitos anos após a
aprovação da lei. Mesmo assim, o surpreendente crescimento do movimento
é também a raiz das atuais contestações. O número das organizações que
emergiram desse processo e principalmente, o volume das terras anunciadas,
têm extrapolado todas as expectativas, e é principalmente daí que surgem
as dúvidas sobre a legitimidade de tal movimento, das demandas feitas, da
sua capacidade de propiciar as mediações necessárias e até da própria possibilidade
do Estado de absorvê-las8. Isto resulta também em frustrações e
descrenças dos movimentos, que suspeitam da eficácia das instituições e da
lei. Ao mesmo tempo em que as reivindicações crescem, há também o risco
eminente de fragmentação do próprio movimento, pela heterogeneidade das
situações e pelas idiossincrasias reveladas em seu interior e que são, em parte,
próprias do processo político em que se inserem esses movimentos sociais
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