O Movimento da Consciência Negra não tem sido muito bem recebido nas comemorações anuais da sublevação do Soweto [em 1976], e no entanto teve um papel decisivo na mobilização das massas. O 16 de Junho não pertence ao ANC [partido no poder], pertence ao povo. Por Nelvis Qekema
Quando lhe pediram, numa entrevista, uma demonstração da força da consciência negra, Steve Biko respondeu com uma só palavra, “Soweto”. Esta declaração ousada era uma referência inequívoca à sublevação de 16 de Junho. Com essa declaração, Biko, o pai fundador do Black Consciousness Movement (BCM, Movimento da Consciência Negra), deixa claro que o 16 de Junho não aconteceu por acaso ou por acidente da história. Foi um reflexo da determinação de um povo para lutar até ao último sobrevivente – até à última gota de sangue do último sobrevivente – contra todas as forças de opressão emanadas do roubo da sua terra pelos colonos brancos. Era essa a firme determinação de um povo heróico decidido a não mais tolerar a violação das suas mulheres, o massacre dos seus activistas, o massivo assassinato ou encarceramento dos seus líderes, o tratamento dos seus pais e mães como escravos.
O 16 DE JUNHO DE 1976 NO SOWETO
Quando os estudantes universitários do Soweto começaram a protestar exigindo uma melhor educação, em 16 de Junho de 1976, a polícia respondeu com gás lacrimogénio e balas reais. Esse dia é hoje um feriado nacional, o “Dia da Juventude”, que honra os jovens que perderam a vida na luta contra o apartheid e a Educação Bantu.
O artigo de Nelvis Qekema descreve o contexto político e económico desta sublevação da juventude do Soweto. Mas os factos reais da luta entre os estudantes e a polícia ao longo de vários dias – em que morreram combatendo muitos jovens e crianças, e muitos mais foram presos – são impressionantes. Veja aquia descrição desses factos.
O 16 de Junho não foi uma mera revolta espontânea e isolada. Foi uma erupção vulcânica precedida por anos de mobilização das massas sob a forte e incessante influência da Black Consciousness (BC, Consciência Negra). Diferentemente do Congresso Nacional Africano (ANC), sempre atreito a ir, com o rabo entre as pernas, fazer queixa à Rainha Britânica das maldades dos boers, o MCN adoptou a perspectiva de que as atitudes dos empedernidos colonos brancos não mudariam com raspanetes morais. A luta era a única solução. Não é irónico que o mediador escolhido pelo ANC tenha sido o mesmo britânico que expulsara os legítimos proprietários das suas terras e decidira entregar o poder sobre as terras nas mãos ávidas da minoria branca? E não fizeram isso sem antes “se estenderem no chão como esponjas para sugarem a riqueza da África meu começo, da África meu fim”. Aqueles de nós que foram obrigados a ingerir o veneno da educação bantu não podemos esquecer como nos foi contada a chamada Guerra Anglo-Boer, que levou à criação da chamada União Sul-Africana em 1910. Haverá alguma falência política no facto de o governo liderado pelo ANC ter recentemente celebrado o 100º aniversário dessa união de estrangeiros para saquearem os nossos recursos?
Consciência Negra
A mensagem da BC era simples: “Negros, estais por vossa conta”. Nada temos a pedir aos opressores. E veio outra mensagem: “Não há combates sem baixas”. Era um claro chamamento à guerra com a noção do que podia custar uma guerra
Steve Biko, fundador do Black Consciousness Movement.
Steve Biko, fundador do Black Consciousness Movement.
de libertação. Biko introduziu mesmo um desincentivo prático: “Todo o negro que chame ‘baas’ a um branco é um não-branco”. Era de facto uma preparação para a guerra. E seguiu-se outra mensagem para o sublinhar: “Somos os nossos próprios libertadores”. Com essa mensagem, era de esperar que os brancos de esquerda fossem corridos a pontapé pela janela e restabelecida a liderança da luta de libertação pelo povo negro desapossado e oprimido. A linha de força foi a consciencialização – a libertação psicológica que se supunha preceder a libertação física. Foi essa a base de palavras de ordem como “Libertar a mente! Libertar a terra!”. Como parte da preparação para a guerra, todos os símbolos relativos aos brancos foram rejeitados, e adoptados símbolos relativos aos negros. Os branqueadores de pele como o Ambi Special e o He-Man, que deixaram os nossos pais com peles de crocodilo para toda a vida, foram rejeitados. Numa colérica resposta aos tóxicos produtos químicos para alisar o cabelo, foi induzido um espírito de rebelião de não se pentear, donde o estilo de cabeleira ama-Azania. E então veio o slogan: “Black is beautiful” [O que é negro é bonito].
Ao falar no Segundo Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em 1959, Frantz Fanon citava Sekou Touré:
“Para tomar parte na revolução africana não basta escrever uma canção revolucionária; há que moldar a revolução ao povo. E se a moldarmos ao povo, as canções virão por si mesmas, e dele mesmo”.
Inspirado pela Consciência Negra, esse foi o espírito revolucionário que prevaleceu em 1976. Ao contrário da actual tendência para o entrismo de algumas partes do movimento de libertação, não havia necessidade de compor canções revolucionárias porque elas “vinham por si mesmas, e das próprias pessoas”. De igual modo, não eram propriedade de alguns líderes; nenhum tribunal nos poderia dizer que canções cantar e como cantá-las!
Os que se sentem mal com o facto de não terem sido eles, mas sim o BCM, a assumir a mobilização de massas e a liderança política da sublevação do 16 de Junho sempre têm clamado que havia um “vazio político” durante essa época de combates. O lixo dos historiadores faz o mesmo. Ora, o vazio é algo que não existe na história. Falar de fases já seria uma conversa aceitável. O Dicionário Resumido de Oxford define “vazio” como “um espaço inteiramente desprovido de matéria”: e a sua aplicação em sentido figurado significa “ausência de um conteúdo normal ou pré-existente de um lugar, de um meio ambiente, etc.”.
O 16 de Junho não foi um acaso, não nasceu do nada
O que os nossos detractores querem sugerir com esse vazio é que, com a ilegalização do ANC (e do PAC [Pan African Congress, outro movimento de libertação, hoje um pequeno partido]), as lutas foram por assim dizer intermitentes e pontuais, até que acabou a ilegalização do ANC. O que isto significa é que todas as lutas heróicas do nosso povo, travadas sob

Sublevação do Soweto, em 16 de Junho de 1976. Cerca de 500 pessoas foram mortas a tiro pelas forças de segurança do Estado de apartheid, quando os estudantes protestavam contra a imposição do africaans como língua do ensino nas escola do “township”. Um dos primeiros a serem mortos foi um aluno do secundário de 12 anos, Hector Pieterson (na foto).
uma influência e uma condução políticas “incorrectas” não foram “reconhecidas pelos únicos representantes autênticos do povo”. Quando se tornou claro que eles nunca poderiam apagar o 16 de Junho da memória do nosso povo, mudaram de planos e fizeram do 16 de Junho uma criação sua.
Para não ficar atrás, o PAC também tentou algumas acrobacias perigosas, como afirmar que, por acção do seu falecido membro Zephania Mothopeng, teriam sido eles os principais arquitectos do 16 de Junho. Procurando em vão alguma prova que pudesse sustentar a sua rotunda mentira, agarram-se desesperadamente ao Julgamento Bethal, em 1978, no qual Mothopeng foi acusado em conjunto com quadros da Consciência Negra, como o ex-comissário político da Azania People’s Organization (AZAPO) Molatlhegi Tlhale. Sendo um movimento não sectário, o BCM deu guarida política a algumas pessoas que tinham afinidades com velhas estruturas do movimento de libertação. É certo que a guerrilha esfomeada do PAC tinha alguns indivíduos na zona de Kagiso que, como o ANC, viram uma oportunidade para tentar recrutar quadros para o PAC. Mas isso não faz do 16 de Junho um movimento de iniciativa do PAC. Desde logo não tinham essa capacidade. Se a tivessem, não andariam tão ocupados a recrutar durante os combates e teriam, isso sim, combatido com as suas armas ao lado das massas. E isso não o fizeram.
Strini Moodley [1] descreve a atitude dilatória dos ramos mais antigos do movimento de libertação, fosse para sabotar, fosse para reivindicar como seus os êxitos políticos do BCM.
“Em 1974, Fatima Meer esteve por trás das tentativas de reduzir a importância do Movimento da Consciência Negra, quando ela e um conjunto de pessoas ligadas ao ANC convocaram uma conferência do renascimento negro em Pretória, creio, na qual pretendiam exigir ao BCM que se redefinisse. E penso que foi a partir daí que se começou a perceber que o ANC não iria estar com simpatias em relação ao BCM. E assim se chegou a 1976 – pois, até então, o ANC e o PAC só existiam pelo nome. Não tinham ninguém no seu Umkhonto we Sizwe ou APLA, ou o que quer que isso fosse. Só depois de [o 16 de Junho de] 1976, que fora organizado pelo BCM, através do South African Students Movement, e quando uma grande quantidade de jovens foram para o exílio, é que o ANC e o PAC de repente se tornaram bastante fortes…”
Muitos académicos parecem ter tido as mãos bem untadas para darem crédito à mentira de que o 16 de Junho “pertence” ao ANC. Por isso foi necessário rebater as afirmações ridículas de Raymond Suttner (2008) no seu livro The ANC Underground in South Africa. Eu critiquei-o assim:
“O que torna tão feio o conteúdo deste seu livro não é o facto de se tratar de propaganda política, mas sim o de ele pretender ser um projecto erudito cuja autoridade deveria ser inquestionada! Faz um grande esforço para descrever a relação ANC/BCM como uma relação pai/filho. Camaradas respeitáveis como Joe Gqabi e Albertina Sisulu são abonados como arquitectos da ‘absorção da BC pelo ANC’. Aparentemente, os poderes sobre-humanos de Gqabi apresentam-no como tendo ‘influenciado alguns dos desenvolvimentos da sublevação de 1976’. Com uma pirueta política, o autor manipula o papel de um invertebrado Nat Serache como tendo ‘apresentado os argumentos de Gqabi aos seus camaradas da BC como sendo os seus próprios’, com o fito de modificar a posição do BCM ao nível nacional. O ventriloquismo de Gqabi teria induzido todo o BCM a ‘aceitar que a sua posição seria contraprodutiva’. Que absurdo! A questão, aqui, não é perguntarmo-nos o que tal significaria quanto à integridade da liderança de Steve Biko e dos seus camaradas, mas sim o que isto sugere quanto à honestidade intelectual de Suttner”.
O movimento estudantil universitário e secundário
Por muito que possa custar, é um facto histórico que a sublevação do 16 de Junho surgiu sob os auspícios do BCM, da sua ideologia e da sua liderança. É um facto histórico que, em 28 de Maio de 1976, o Movimento dos Estudantes Sul-Africanos (SASM) realizou o seu Conselho Geral dos Estudantes em Roodepoort, onde foi discutida a lamentável questão da imposição da língua africaans como meio para a instrução. O SASM era a componente estudantil do BCM. No texto O combate da juventude: As revoltas estudantis de 1976 [2], página 25, uma resolução adoptada contra a imposição do africaans e de apoio aos estudantes que já vinham boicotando as aulas está registada como tendo sido inciativa de V. Ngema, com o apoio de T. Motapanyane. As actas do Conselho Geral dos Estudantes registam a ideia da seguinte forma:
“As recentes greves nas escolas contra o uso do africaans como meio de instrução é um sinal de manifestação contra um sistema escolar destinado aproduzir ‘bons rapazes para a indústria’ ao serviço dos poderes vigentes… Por isso decidimos rejeitar liminarmente o uso do africaans como meio de instrução, apoiar decididamente os estudantes que tomaram posição rejeitando esse dialecto (e) também condenar o sistema educativo com separação de raças”.
O papel do BCM, através do SASM e da Black People Comvention (BPC) está tão bem documentado que é desconcertante ver como certas pessoas tentam tornar o dia em noite. O registo histórico continua a proteger a verdade factual:
“A seguir à conferência de Maio de 1976, o SASM contactou Seth Mazibuko e outros líderes das escolas públicas secundárias e superiores. Esse grupo, com o apoio do SASM, convocou um comício em Orlando East, para o dia 13 de Junho de 1976”. (Ibid: 25)
É importante realçar o facto de que Seth Mazibuko é um dos que, posteriormente, desertaram para o ANC; e que, convenientemente, terá provavelmente esquecido o papel factual do BCM na sublevação do 16 de Junho. Quando a verdade ainda tinha acolhimento na sua mente, ao testemunhar no seu próprio julgamento em 1977, Mazibuko disse:
“Em 13 de Junho de 1976, eu participei nesse comício; então [posso dizer que] havia imensa gente no comício. O orador principal era um homem chamado Aubrey [a não confundir com Aubrey Mokoena que não esteve presente] que nos explicou os anseios e os objectivos do SASM. Também falámos sobre o uso do africaans como meio de ensino ou como língua e apelámos aos prefeitos das nossas escolas que explicassem publicamente a sua posição sobre o assunto. Eu levantei-me e disse à assistência que a Escola Phefeni [secundária júnior] recusara o uso do africaans e fizera boicote às aulas durante o mês de Maio de 1976. Aubrey perguntou então como poderiam as outras escolas apoiar-nos na nossa atitude, uma vez que elas estavam em período de exames escritos, e a Phefeni não… Don [Tsietsi] Mashinini sugeriu a realização de uma
manifestação de massas de todas as escolas negras em 16 de Junho de 1976… Fez-se então a eleição do comité regional do SASM do Soweto. Aí foram eleitos os seguintes membros do comité: Presidente, Don Mashinini da [escola] Morris Isaacson; Vice-Presidente, Seth Malibu; eu próprio, Secretário, e uma estudante da Escola Superior Naledi – não me lembro do nome dela [Sibongile Mkhabela]… Aubrey também explicou que todos os prefeitos e monitores iam constituir um Comité de Acção”.
Embora o falecido Muntu Myeza tenha advertido que “os renegados raramente são os melhores advogados da causa de que eles próprios desertaram”, é útil prestarmos atenção às declarações feitas por essas fontes antes de terem perdido a sua sensatez política. Murphy Morobe, que desde então desertou para o ANC, lembra assim o papel do BCM através do SASM:
“Essa escola secundária júnior de Orlando West [a Phefeni Junior Secondary School] estava a boicotar as aulas nessa altura, em 1976. Creio que nos começos de 1976. Acho que até na Escola Belle de Orlando West também houve algumas perturbações… Nós íamos a caminhar para Orlando, mesmo depois de passarmos pela Escola Superior de Orlando West – ao lado da escola secundária júnior, e encontrámo-nos aí com uma camarada que… tinha começado há pouco tempo a leccionar na Escola Phefeni, Nozipho Mxakhati, Joyce… Joyce Nozipho Diseko [nome de casada]… que então nos disse: ‘O que estão vocês a fazer quanto a isto?’ Não recordo quais os camaradas que iam comigo, se era Zweli ou Super… Decidimos tratar do assunto e inclui-lo na agenda do SASM para ser discutido. E, uma vez na agenda, as coisas começaram a desencadear-se a partir daí… Com o primeiro comício que convocámos, nem sequer tivemos de fazer muita divulgação para vir imensa gente participar no comício onde íamos discutir a resposta a dar a este problema que estava a acontecer na Escola Secundária Phefeni de Orlando West”. (Ibid: 26)
Mandar os filhos à escola e pagar a sua educação é uma responsabilidade dos pais. Por isso os pais não podiam ficar parados enquanto o futuro dos seus filhos estava a ser prejudicado. Eles tinham as suas próprias organizações, como a Black Parents Association. Mpotseng Kgokong [3] observa que:
“O primeiro grupo a responder [ao Memorando do vice-ministro da Educação Bantu [4] às Direcções das escolas, aos Inspectores e aos Reitores, dando-lhes instruções para usarem o africaans como meio de instrução] foi a Direcção Escolar de Tswana. Já em Janeiro de 1976 estas direcções de escolas em Meadowlands, Dobsonville e outras zonas da área de acção da

M
Direcção Escolar de Tswana tinham assumido uma atitude [de oposição activa] contra estas instruções”.
“No fim-de-semana anterior ao desfile, foi realizado um encontro entre os estudantes e alguns membros do BPC para ultimar a estratégia. O plano do comité de acção dos estudantes era realizar uma marcha pacífica – com estudantes de todo o Soweto que se encontrariam no estádio de Orlando e então se encaminhariam para a sede regional do Departamento de Educação Bantu onde entregariam um memorando com as queixas dos estudantes. O itinerário principal passava pelo centro de Orlando West devido ao papel simbólico da Escola Secundária Phefeni. Os estudantes tinham decidido, no seu comício de 13 de Junho, que marchariam por ‘qualquer itinerário que fosse dar à Escola Phefeni’ para demonstrarem a sua solidariedade com os estudantes em greve. Uma vez chegados à Escola Phefeni, no caminho para o estádio de Orlando, Tsietsi Mashinini falaria aos estudantes”. (Ibid: 27)
Há quem queira ignorar os factos históricos
Há quem não goste de argumentos que demonstrem que organizações como o ANC e os seus ramos militares foram de facto ressuscitados pela eclosão da sublevação do 16 de Junho, na qual muitos jovens decidiram sair do país em busca de treino militar e de armas. A pergunta, sempre feita e não respondida, é: porque é que o ANC não tirou vantagem da sublevação, apesar da sua tão vangloriada presença e poderio militares? Em 1985, Oliver Tambo, presidente do ANC no exílio, arrumou assim o assunto:
“Esta sublevação de 1976-77 foi, sem dúvida, um marco histórico decisivo… Num curto período de tempo atirou para a frente de combate da nossa luta milhões de jovens… Trouxe para a ribalta muitos camaradas que tinham pouco ou nenhum contacto com o ANC… Organizacionalmente, em termos políticos e militares, nós éramos demasiado fracos para tirar vantagem da situação que se cristalizou logo nos primeiros acontecimentos do 16 de Junho de 1976. Tínhamos muito poucas unidades activas dentro do país. Não tínhamos presença militar que se visse. Os elos de comunicação entre os que estávamos fora do país e as massas do nosso povo eram ainda demasiado poucos e fracos para respondermos a um tal desafio, como o assumido pela sublevação do Soweto”. (Ibid: 22)
Nós, no BCM, continuamos a defender que o africaans foi apenas o rastilho que incendiou uma situação que já era volátil. A chegada do BCM à ribalta política com a sua visão radical da transformação política atingiu em cheio a sensibilidade das massas, na sua organização e na sua mobilização. Esta mobilização, construída durante um período de tempo, provocou uma mudança de paradigma em relação à orientação baseada nos direitos humanos difundida pelo ANC. Como Biko sublinhou: “Os negros já não estão interessados em reformar o sistema porque fazer isso implica aceitar os aspectos mais importantes em que esse sistema assenta. Os negros estão na rua para transformar completamente o sistema e para fazer com ele o que

Localização do Soweto, a sudoeste de Joanesburgo (a vermelho).
muito bem entenderem”. Esta nova atitude, em condições sócio-políticas duras, forneceu uma mistura perfeita e propícia à fermentação de uma sublevação de uma escala sem precedentes. Eis um quadro dessas agudas circunstâncias sócio-políticas:
“Cedendo às pressões dos negócios e da economia e criando uma situação de instabilidade, em 1972 o governo inverteu a sua política de não construir novas escolas nos townships[grandes bairros pobres] como o Soweto e introduziu o conceito das Escolas Secundárias Júnior. Houve um aumento extraordinário da frequência do nível escolar secundário para os africanos em geral. As matrículas passaram de 178.959 em 1974 para 389.066 em 1976, um aumento de 140% em dois anos. Entre 1972 e 1974, nada menos que 40 novas escolas foram construídas só no Soweto e as matrículas nas escolas secundárias aumentaram de 12.656 para 34.656, um salto de quase 300%. Tudo isto contribuiu amplamente para a consciencialização e a solidariedade da juventude escolar.
Contexto de crise económica, laboral e política
Os aumentos massivos dos preços do petróleo, devido ao conflito israelo-árabe, em 1973-74, aliados à rápida inflação, levaram a economia mundial a uma rápida depressão. Em 1974 apenas 0,53 por cento do Produto Interno Bruto eram gastos na chamada educação “bantu”. Isto significava uma quantia de 102 milhões de rands, num total de cerca de 19 mil milhões. Em 1975, uma queda brusca do preço do ouro veio agravar as dificuldades económicas da África do Sul. Durante a retracção económica de 1975, as escolas africanas estavam à míngua de dinheiro. Por cada 644 rands gastos com um estudante branco, gastavam-se apenas 42 rands com um estudante africano. O governo, sem dinheiro, tentou poupar nos orçamentos destinados à maioria africana, sobretudo os residentes dos townships africanos. Todos os serviços e facilidades foram prejudicados, incluindo as escolas. (Ibid: 7-8)
Como reacção à recessão económica, a ideologia do apartheid tornou mais fácil cortar no orçamento já de si inexistente destinado aos africanos. Mas isso não bastava, e com o passar do tempo reduziram os anos de escolaridade de 13 para 12. O que significou a supressão do Standard 6 (8º ano) com o efeito catastrófico de que “no começo de 1976 os alunos que acabassem o Standard 5 podiam aceder directamente à escola secundária”. Esta não-planeada convergência de classes teve o seguinte resultado:
“Em 1976, matricularam-se no Form 1 (Standard 7), o primeiro ano da escola secundária, 257.505 alunos, mas só havia capacidade para 38.000 estudantes. A sobrelotação atingiu valores ainda mais altos. Os padrões educacionais degradaram-se ainda mais. As injustiças da Educação Bantu estavam a tornar-se crescentemente intoleráveis”. (Ibid: 8)
Na frente laboral, o Black Allied Workers Union (BAWU, Sindicato Unitário dos Trabalhadores Negros) já estava sob a influência da Black Consciousness e uma greve geral, em 1973, agravou as condições da economia. Na frente internacional, a Guerra Fria parecia estar a favorecer o Bloco Socialista e as lutas de libertação anti-colonial no continente [africano].
Com os conflitos políticos internos do Portugal colonial, viu-se a chegada ao poder da Frelimo em Moçambique e do MPLA em Angola. O BCM tirou vantagem da situação e organizou os comícios “Viva a Frelimo” que estiveram na origem do celebrizado julgamento SASO/BPC. Entretanto, a luta armada na então Rodésia (agora Zimbabwe) estava na sua fase avançada. Durante o mesmo período, o movimento Black Power nos EUA estava ao rubro e com enorme influência na frente interna. O carismático líder popular revolucionário, Steve Biko, era sempre sistematicamente banido de molde a não poder ser eleito presidente no congresso de fundação do BPC. O povo demonstrou a sua confiança no seu líder atribuindo-lhe o posto de presidente honorário. O BCM intensificara os projectos de desenvolvimento comunitário para incrementar a sua autoconfiança. O país inteiro era pasto de chamas ateadas e atiçadas pelo BCM.
Neste panorama, há que reconhecer que “Punt” Jahnson, vice-ministro da Educação Bantu, estava a brincar com o fogo quando respondeu do seguinte modo a uma interpelação parlamentar em 6 de Maio de 1976:
“60 a 65% da população branca fala o africaans, nós concordámos em dar pleno reconhecimento às línguas oficiais. Um negro pode ser formado para trabalhar numa herdade ou numa fábrica. Pode trabalhar para um patrão que fala o inglês ou o africaans e os que lhe dão a instrução podem falar inglês ou africaans. Porque havíamos de começar agora a disputar-nos acerca do meio de instrução da população negra?… Não, não os consultei e não vou consultá-los. Consultei a Constituição da República Sul-Africana… Os líderes dos países têm o direito de decidir o que querem para os seus países quando estão no poder. Em todo o caso, no que diz respeito às zonas brancas, a decisão está tomada e eu vou tratar de a manter.” (Ibid: 18)
Neste ponto, não será difícil perceber como os factores internacionais, regionais e locais se combinaram para fermentar a sublevação do 16 de Junho. No âmbito local, a BC veio trazer uma resposta antitética ao racismo branco e ao apartheid, que era distinta da postura de outrora, do Movimento do Congresso, de dar-a-outra-face e de chapéu-na-mão de outrora. Quando muito, a arrogância e a intolerância racistas da minoria de colonos brancos redobraram a coragem e a determinação das massas em luta sob a liderança do BCM. A resposta do regime do apartheid foi o assassinato de milhares de negros e a ilegalização de cerca de 17 organizações da Consciência Negra em Outubro de 1977. Porque foram eles obrigados a fazer isto, se “em 1976 nós não tínhamos organizações”? Caracterizando o avassalador furacão negro que obstinadamente soprava ventos de mudança com o epíteto de “perigo escuro”, decidiram que era mais seguro assassinar a maioria dos líderes da Consciência Negra; e foi com essa ideia que mataram o nosso farol, Steve Biko, em 12 de Setembro de 1977. Os líderes, como Biko, que foram mortos não pertenciam a outra organização que não o BCM. Os processados do SASO/BPC, acusados pelo Estado de terem estado por trás do 16 de Junho, eram obviamente quadros do BCM. A principal testemunha de defesa foi, evidentemente, o pai fundador do BCM, Steve Biko.
“Underground”? Só se estavam enterrados a dois metros de profundidade!
Onde estavam todas as outras organizações e todos os outros dirigentes quando ocorreram estes julgamentos? Por vezes arriscam a desculpa esfarrapada de que operavam na clandestinidade. Não foi na clandestinidade que as massas e o BCM travaram [os combates d’] o 16 de Junho, e seria um mistério do século XX se alguém passasse à clandestinidade durante uma revolta a céu aberto! Quando este argumento da clandestinidade foi apresentado ao falecido Muntu Myeza, a língua dele cuspiu como a de uma serpente. Retorquiu que, então, teriam que se enterrar à profundidade de dois metros [clandestinidade = luta subterrânea, “underground”] e por isso não conseguiram chegar ao terreno durante a sublevação do 16 de Junho!
Com a ilegalização do Movimento do “Swart Gevaar” [Perigo Escuro] em 1977, seis meses depois, em 28 de Abril de 1978, os quadros da BC tinham conseguido evadir-se da prisão e constituíram uma enorme organização a partir das cinzas das organizações ilegalizadas. Esta organização era a Azanian People’s Organization (AZAPO) [Organização do Povo Azaniano] que era agora o BPC “não ilegalizado”. A AZAPO garantiu a liderança da luta, enquanto porta-bandeira da filosofia BC e organização dirigente do BCM. Foi esta organização que manteve vivo o nome de Biko, lembrando a sua morte a cada ano que passava. Foi esta organização que manteve viva a memória do 16 de Junho, porque era ela a legítima herdeira dos organizadores da sublevação.
Por isso é trágico, para a verdade e para a história, que o papel decisivo do BCM e dos seus quadros da AZAPO não seja sequer mencionado nas comemorações do 16 de Junho. O 16 de Junho deveria ter servido para desenvolver uma consciência nacional, e não para servir interesses paroquiais que dele fizeram propriedade de uma organização que teve um papel diminuto, se é que teve algum, na sua orquestração. Um dos objectivos do combate era reescrever a história. É difícil ver como a actual reescrita da história difere da história. A luta contra a distorção e a contaminação da memória da Luta de Libertação é parte integrante da Revolução Cultural.
f_sowetonelvisqekemaNelvis Qekema é o dirigente da AZAPO para a Juventude. Ocupou diversos cargos no BCM, incluindo a presidência do Azanian Students’ Movement (AZASM) e a Azanian Students’ Convention (AZASCO).
Original (em inglês) em Pambazuka News. Tradução do Passa Palavra.
Notas
[1] Citação da entrevista realizada em 24 de Julho de 2002 pelo Centro de Documentação para a História Oral, da Universidade de Durban-Westville. Moodley é co-fundador do BCM e ocupou diversos cargos na AZAPO quando regressou de Robben Island [a prisão política onde esteve também Nelson Mandela].
[2] Na elaboração deste texto servi-me abundantemente de The Youth Struggle: The 1976 Students’ Revolts, que está publicado na net com autorização da UNISA Press, enquanto extracto de The Road to Democracy in South Africa (volume 2: 1970-1980).
[3] Um artigo de Kgokong intitulado June 16 Uprising, Background and Aftermath. Ele foi secretário-geral do Balck Consciousness Movement of Azania (BCMA) no exílio e, por incumbência, secretário-geral da AZAPO.
[4] Houve dois vice-ministros, Andries Treurnicht e Punt Johnson. Aqui Kgokong refere-se a Treurnicht.